Ladrão de bicicleta…

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Ter uma bicicleta roubada e depois ver a substituta ter o mesmo destino, faz a gente se sentir um pouco nu. Aquela sensação de que nada nos pertence e mesmo assim, as coisas bem que poderiam continuar no mesmo lugar onde foram deixadas!

***

Um amigo se despede de outro numa esquina qualquer de uma cidade do interior do Rio de Janeiro, manda recomendações à sua família, e segue em direção ao poste, lá tem uma surpresa desagradável: Sua bicicleta foi roubada! Ele olha para o lugar onde prendeu-a e vê apenas o vácuo, uma espécie de miragem. Vira-se para um lado e depois outro.Nada. A cidade segue sua rotina, os transeuntes entram e saem dos bancos, os barulhos de todos os dias continuam. Não há qualquer vestígio do ladrão.  Naquele momento, todos são suspeitos. Ele encara pessoas nos olhos, inclusive crianças e até cachorros. Seria um daqueles cães, amigo fiel do ladrão? Pensa em todas as possiblidades, faz todas as simulações. Desolado, liga para casa e fala tristemente à esposa, “amor, roubaram minha bicicleta”.

Numa cidade como esta, um trabalhador sem sua bicicleta é um nada; um zé ninguém; uma pessoa fadada ao fracasso; uma espécie de pária; um cão sem dono; um João sem braço. É com este pensamento que ele para num botequim e toma uma dose de cachaça, come um ovo colorido, lê as notícias de crimes no jornal e sai. Parece atordoado e agora cambaleia em direção ao ponto de ônibus. Lá, vê a imagem do terror;descobre que será mais um na filado coletivo caro, irá completar a melancoliados que esperam. Sua expressão, outrora feliz, mergulha na fumaça da desolação. Ele adormece e perde o último carro, até as lotações piratas estão cheias. Caminha solitário com passos lentos. Sente o frio enquanto se deprime cada vez mais. Toma a decisão de ir à pé e faz uma oração: “Jesus, pega em minhas mãos e me conduz até em casa”.

Ele desaparece na neblina e passa a fazer parte da escuridão. Seus sapatos estão gastos, sua roupa exala o cheiro de seu cansaço, na estrada a caminho de casa, ele pega garoa, sereno, um vento sudoeste bem forte lhe fustiga a cara. É uma noite fria, com sons de coruja, canto de grilos, e aviões supersônicos passando sobre sua cabeça. Os contrastes, ora sutis, ora avassaladores, parecem construir o mapa do caminho. Ele atravessa a extensão de um lago seco, vê a vegetação escurecidas, depara com gatos abandonados, caracóis africanos se deslocando e deixando rastro de brilhantes. Ele vê um cavalo morto, um casal sentado numa marquise fazendo sexo. Repara nas lâmpadas queimadas, nos carros que passam em alta velocidade e pequenas casas iluminadas com barulho de TV ligada.

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Perto de chegar em casa, a imagem do possível ladrão vem em sua memória. Ele começa a pensar nos políticos, imagina o rosto de um senador, de um deputado, de um chefe de polícia, todos fugindo com sua bicicleta. Desperta o riso em sua alma, abre o portão e é recebido pelo seu cachorro, feliz e preocupado. O cão sente seu cansaço e balança o rabo com mais vigor ainda, salta sobre ele, lambe suas mãos, agradece seu retorno para casa. A esposa abre a porta preocupada, mas com o olhar cheio de ternura, abraça-o feliz, por estar vivo. Toca seus cabelos já meio grisalhos. Ele a abraça e chora.

No banheiro, lava o corpo na água bem quentinha, na sala, encontra um delicioso prato de sopa bem quente e os gatos caminhando em sua frente, como se lhe estivessem abrindo caminho entre os espíritos até a mesa. Ele bebe a sopa com colheradas sonoras, sendo vigiado pela mexas negras da esposa que lhe estende o melhor sorriso. Assim, subitamente, do nada, ela fala a única frase da noite: “Fique tranquilo, meu amor, nesta vida, vão-se os anéis, mas ficam os dedos”!

Cabo Frio, 11.07.2013

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